terça-feira, fevereiro 03, 2004

Finalmente de regresso e agora determinado à fidelidade...

Excelente artigo o de António José Saraiva sobre a morte do jogador do Benfica!
Sempre me impressionou, particularmente nos últimos anos, a dificuldade de aceitarmos a morte, as constantes censuras às pessoas, ao sistema, à organização, por alguém ter morrido, por uma tragédia ter provocado mortes...como se tudo estivesse nas nossas mãos...
Não sabemos o que fazer da vida, quando não aceitamos a morte...

Por isso aqui transcrevo esse artigo, com a devida vénia:

O mito da imortalidade

«Todas estas interrogações, todas estas perguntas, reflectem uma coisa: temos dificuldade em aceitar a morte.»
NÃO acontece muitas vezes.
O jogador acabara de ser punido com um cartão amarelo - e tinha ainda os olhos de milhares de espectadores em cima e as câmaras da televisão apontadas para ele.
Então, curvou-se para a frente, pôs as mãos nos joelhos e tombou para trás.
Pelo modo como o corpo caiu percebeu-se logo que já era um corpo sem vida - visto que não se protegeu, deixando a cabeça bater no chão sem um gesto de defesa.
A comoção foi geral - no campo e em casa.
Mas, passados os primeiros momentos de incredulidade, as perguntas começaram a surgir.
As insinuações.
Primeiro veladas - mas cada vez mais explícitas à medida que o tempo passava.
Teria a assistência sido a melhor?
Haveria no estádio o equipamento médico necessário para acorrer a casos destes, concretamente um «desfibrilhador»?
Não teria a ambulância demorado tempo demais?
A noite encarregar-se-ia de responder a todas as perguntas.
A assistência tinha sido impecável.
Fora feito tudo o que as regras aconselhavam: desde colocar o jogador de lado à massagem cardíaca no próprio local.
O «desfibrilhador» existia.
A ambulância entrou em campo quando a equipa médica lhe deu ordem para entrar, ou seja, quando entendeu ser o momento adequado para transportar o jogador para o hospital.
Esgotado o tema da assistência em campo, vieram então outras dúvidas.
Serão os exames aos atletas de alta competição tão completos quanto deveriam ser?
Não haverá negligência médica?
Não se poderia fazer mais?
Todas estas interrogações, todas estas perguntas, reflectem uma coisa: temos dificuldade em aceitar a morte.
Queremos encontrar sempre para ela uma justificação exterior - não admitindo que resulte de uma coisa inelutável: a vulnerabilidade da condição humana.
Queremos sempre acreditar que, se a assistência tivesse sido melhor, se houvesse mais um aparelho, se a ambulância tivesse demorado menos uns minutos, se, se, se, aquela morte poderia não ter acontecido.
No fundo, queremos convencer-nos de que a morte nunca é inevitável.
Que há sempre uma maneira de lhe escapar.
De a enganar.
De uma forma ou de outra - para nossa própria defesa - queremos todos acreditar no mito da imortalidade.
E então quando alguém morre no meio de um estádio, à vista de todos, com as câmaras de televisão em cima, custa-nos ainda mais a acreditar que aquilo é mesmo real.
Fehér era um atleta alto e belo.
Se há seres que parecem destinados à imortalidade, ele era um deles.
Quem pode portanto aceitar que na sua morte não tenha havido alguma coisa que falhou?
Que ela se deveu apenas ao facto de a condição humana ser, por natureza, frágil?
P.S. O realizador da SportTV que transmitia o jogo recusou pôr no ar imagens do rosto transfigurado de Fehér após o colapso. «Quero toda a gente fora da cara», ordenou aos operadores de câmara. Parabéns. O seu nome é Ricardo Espírito Santo.
jsaraiva@mail.expresso.pt

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