terça-feira, março 23, 2004

Aborto: Parlamento Português rejeita Ampliação
Pela terceira vez fracassa tentativa de liberalizar mais o aborto

No dia 3 de Março, com os votos dos dois partidos do governo, PSD (Partido Social Democrata) e PP (Partido Popular), o parlamento português rejeitou 3 propostas de ampliação do aborto apresentadas pelos partidos de esquerda, PS (Partido Socialista), PCP (Partido Comunista Português) e BE (Bloco de Esquerda), e ainda a proposta de realização de um referendo sobre a mesma matéria.

Mantém-se, pois, em vigor a lei de 1984. O aborto é permitido, em qualquer altura, quando seja o «único meio de remover perigo de morte ou de grave ou irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher grávida»; quando for apenas «indicado», e não «o único meio», para resolver uma destas situações, o prazo limite são as 12 semanas; em caso de «grave doença ou malformação» do feto, até às 24 semanas; em caso de violação, até às 16 semanas.

A rejeição das propostas de ampliação do aborto por parte dos dois partidos do governo foi feita para cumprir o acordo que deu origem à coligação que desde Março de 2002 governa o país. Nessa altura o PP exigiu que, por respeito para com o “não” que ganhou o referendo popular realizado em 1998, até 2006 fossem recusadas todas as propostas de ampliação dos pressupostos do aborto legal.

Apesar desta rejeição, mostrou-se que muitos deputados que votaram a rejeição o fizeram apenas por razão desse compromisso, e pela disciplina de voto que o PSD impôs aos seus deputados.


Terceiro fracasso

Em 1997, quando o PS governava e detinha metade dos lugares do parlamento, a sua proposta de ampliação do aborto foi rejeitada por um só voto de diferença. Contudo, um acordo entre os líderes dos dois principais partidos leva a um referendo em 28 de Junho de 1998.

Aos 8.500.000 votantes iria perguntar-se: «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?»

Pelo “sim” lutaram o PCP e a maioria dos políticos do PS (embora o católico António Guterres – líder do partido e primeiro-ministro tenha manifestado formalmente a sua oposição). O PSD – internamente muito dividido – não tomou posição. O PP lutou pelo “não”.

Os meios de comunicação não esconderam a sua preferência pelo “sim”. Sondagens, inquéritos, análises e previsões eram unânimes sobre a certeza da vitória do “sim”.

Face à elevada abstenção (68%, mais do que os 50% indispensáveis para o tornar vinculante), mas apoiados nas primeiras previsões indicando a vitória certa do “sim”, comunistas, socialistas, e todos os militantes pró-aborto declararam formalmente que o referendo tinha de ser respeitado, apesar da abstenção.

Mas no final o “não” conseguia mais 48.000 votos que o “sim”. E o referendo, sem ser vinculante, recebeu dos pró-abortistas a involuntária garantia de ser respeitado.


Política e comunicação

O relançamento da discussão do aborto foi prometida antes de Setembro passado pelo BE (Bloco de Esquerda), formação de extrema esquerda nascida em 1999, actualmente com 3 lugares no parlamento. A sua ideologia já foi descrita como “a síntese da Revolução de Outubro de 1917 com o Maio de 1968”: a legalização das drogas, o aborto livre, o casamento de homossexuais, são algumas das suas bandeiras.

Mesmo com apenas 2,79% do eleitorado e 150.000 votantes, o BE demonstra dominar os recursos da propaganda e conquistou protagonismo nos meios de comunicação. Roubou ao PS e ao PCP a iniciativa das propostas de esquerda, também quanto ao aborto.

De Setembro até ao dia 3 de Março, a questão do aborto, e a posição pró-aborto em especial, ocupou a opinião pública em diversas abordagens, doseadas ao longo do tempo. Partir de um facto: o julgamento de 17 implicados em práticas de aborto. Sublinhar a “crueldade de atirar para a prisão as mulheres que abortam”. Citações de defensores da vida (políticos, bispos, médicos) que, naturalmente, vêm dizer que “não querem que as mulheres vão para a prisão”. Concluir como é absurdo ser-se pela penalização do aborto e não querer mandar as mulheres para a prisão. Publicar números e percentagens sobre abortos legais e clandestinos, afirmando que a lei actual está antiquada. Protestar porque a lei actual obriga as mulheres portuguesas ir abortar às clínicas privadas espanholas. Demonstrar o apoio popular com uma “petição ao parlamento para um novo referendo” que reuniu 120.000 assinaturas. Publicar lista de subscritores significativos (50 artistas, 30 professores universitários). Novas sondagens revelando que 70% dos portugueses consideram oportuno debater o aborto. E repetir de mil maneiras que o Portugal de agora já não é o mesmo, e que tudo vai mudar.

Os dois principais diários (“Diário de Notícias” e “Público”) revelam uma tendência favorável à ampliação do aborto. Vários jornalistas do “Público”, incluindo o subdirector Eduardo Dâmaso (que interveio como comentador final de um debate televisivo entre partidários e opositores do aborto), são subscritores da petição do referendo. O semanário “Expresso”, o jornal com mais leitores, tem no director, José António Saraiva, uma das poucas pessoas que frontalmente se mostra contrário. “Só há uma forma de não colocarmos tudo em causa: estabelecermos o princípio de que a lei tem de defender a vida humana desde o momento em que se forma até ao momento em que se extingue. Aceitar excepções a esta regra é, objectivamente, consagrar na lei os atentados contra a vida”.

Na altura do Natal, o Presidente da República, indultou 38 pessoas, entre as quais uma enfermeira condenada pela prática de aborto agravado. O gesto foi interpretado como uma intervenção no debate mediático.


Os argumentos

A discussão mediática esteve principalmente centrada sobre a adequação da pena de prisão à prática de aborto: se é oportuna, ou não, a despenalização (manter como crime mas não definir penas) ou se é preferível a descriminalização (passando a ser um ilícito de outra natureza jurídica), ou se será melhor, antes, criar situações processuais especiais que impeçam o decurso do processo. Um debate labiríntico, e sempre a criar espaços de legitimidade para o aborto.

Em quase todos os casos, e tanto na boca dos pró-vida como dos pró-aborto, se afirmava: “pelo menos concordamos em que o aborto é um mal”. Tal pressuposto, contudo, é talvez o mais falacioso. Não é a mesma coisa dizer-se que o aborto é um mal por ser semelhante ao mal que há quando um filho bate na mãe; ou dizer-se que o aborto é um mal por ser semelhante ao mal de quem vai ao dentista. O “mal” que há, por exemplo, em caluniar, é necessariamente duma natureza diferente do mal que há, por exemplo, em tropeçar e partir uma perna.

O hábito de se ser relativista na verdade e céptico na moral facilita estas ambiguidades. Chesterton há quase um século denunciara esse modo de argumentar, em raciocínios do tipo: “independentemente do que cada um de nós possa pensar sobre o extermínio dos mendigos, pelos menos temos de concordar em que deve ser feito em boas condições de higiene”.


A posição pró-vida

Tal como na altura do referendo, a posição a favor da vida foi personificada por associações de defesa da vida e da família, como “Associação Mais Família”, os “Jovens Socialistas Católicos”, a “Federação Portuguesa pela Vida", “Ajuda de Berço” ou a “Associação Portuguesa de Famílias Numerosas”. Apesar de demonstrar pouca experiência no debate público, foram marcando presença nas várias instâncias a que foram chamadas.

A principal iniciativa foi recolher assinaturas para uma petição em favor da vida e da família intitulada “Mais vida, mais família”. Num só mês reuniram 200.000 assinaturas, significativamente mais que as 120.000 que, durante mais de três meses, conseguiu a petição pelo referendo. Um êxito que ultrapassou as expectativas.


A Igreja envolvida no debate

A Igreja foi envolvida a contragosto. Tudo começou com a publicação no Expresso de uma entrevista com o bispo do Porto onde se escrevia que “o aborto não devia ser penalizado”. Três dias depois a comissão permanente da conferência episcopal, reconhecendo a perplexidade gerada por estas afirmações, declarou que “a Igreja opõe-se a todas as tentativas legais ditas de ‘despenalização do aborto’”. Um dia depois o próprio bispo do Porto afirmou num comunicado: “sou contra o aborto, porquanto a pessoa humana tem direito à vida desde a sua concepção até à morte natural”.

Apesar destes esclarecimentos, as palavras atribuídas ao bispo do Porto foram citadas centenas de vezes. Até a organização Catholics For a Free Choice – instituição abortista americana – emitiu um comunicado assinado pela representante europeia, Elfriede Harth, manifestando o seu reconhecimento.

Outras declarações inequívocas dos bispos do Funchal, de Aveiro, de Angra, de Évora, e de Lisboa, encontraram espaço somente na imprensa católica, sem dimensão nacional.

No dia 5 de Março, dois dias após a rejeição parlamentar da ampliação do aborto a Conferência Episcopal Portuguesa publicou o documento “Meditação sobre a vida”, expondo a doutrina cristã e desfazendo confusões. Nele se diz que “o ponto crucial de toda a polémica acerca da legislação acerca do aborto consiste nisto: o embrião humano e o feto são ou não são um ser humano desde o primeiro momento?”



Encontro marcado para 2006

Se não se conseguiu aprovar a lei, os defensores do aborto tentaram consolidar a ideia de que, se não foi agora, será necessariamente em 2006, após as eleições para o próximo parlamento.

Há certeza de que até então não se alterará a lei. Fica, também, fixado o momento para o qual se vão dirigir os esforços comunicativos pró-aborto (que costumam ter o domínio da agenda mediática). Mas também pode ser visto como um objectivo para o qual poderiam trabalhar as instituições pró-vida.

Este texto é retirado da edição nr. 57 (Março) do Infomail (uma iniciativa de um centro cultural universitário de Braga!)

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