domingo, março 04, 2007

Arrumando papeis: "O Referendo, a Política e o Futebol", um artigo de Pedro Afonso

Uma tarde de Domingo é uma boa altura para arrumar papeis...passam diante dos meus olhos umas centenas de folhas de papel em que estão os quase quatro meses da campanha do Não (Novembro a Fevereiro). Alguma nostalgia e a eterna dúvida se era possível ter feito melhor, fazendo de outra forma qualquer...?
Entre esses papeis, este artigo do Pedro Afonso, retirado de www.mulheresemaccao.org. Num momento do debate em que os políticos retomaram as rédeas dos trabalhos, é bom recordar a total natureza civil do movimento do Não.


O referendo, a política e o futebol

Regra geral, os debates nos órgãos de comunicação social estão limitados a duas áreas temáticas: a política e o futebol. Os intervenientes, por sua vez, também não variam muito. No fundo, se percorrermos os vários canais de televisão, as rádios e os jornais, vamos encontrar quase sempre os mesmos protagonistas. A juntar-se a eles, temos os comentadores desportivos e políticos. O círculo encerra-se e, ao fim de algum tempo de os ouvir, quase que adivinhamos aquilo que cada um vai dizer. Numa palavra, torna-se um perfeito enfado depararmos sempre com as mesmas caras e os mesmos discursos.

O cidadão comum sabe, porém, que o seu dia-a-dia tem muitos outros problemas, mas que só chegam à agenda da comunicação social quando adquirem contornos dramáticos ou de escândalo. A rotina instalou-se e a realidade é-nos retratada de uma forma filtrada e parcial. Essa realidade, no entanto, vai muito além daquilo que nos é mostrado e dos temas que conseguem ter tempo de antena. Há outros assuntos importantes, e existem ainda outros intervenientes, para além dos habituais, e que merecem ser escutados.

Tivemos recentemente um exemplo disso, com o referendo sobre o aborto. Assistimos a uma sociedade civil mobilizada, viram-se novas caras, ouviram-se outras opiniões, o que acabou por ser uma lufada de ar fresco na monotonia em que se tornaram os debates na comunicação social.

Mas, o mais interessante foi observar que muitas das pessoas que intervieram durante esta campanha tinham diversas profissões: médicos, advogados, professores, biólogos, sociólogos, etc. Talvez por essa razão, as suas intervenções pareciam-nos mais genuínas e mais motivadas por convicções pessoais do que por interesses políticos. A confusão instalou-se, chegando ao ponto de se verificar que algumas pessoas tradicionalmente posicionadas à direita, defenderam o “Sim”, e outras (embora em menor número), habitualmente mais conotadas com um pensamento de esquerda, defenderam o “Não”. Por outro lado, os políticos sentiram o incómodo desta intromissão por parte da sociedade, num palco que lhes é habitualmente reservado. Diria mesmo que, em muitos casos, os próprios políticos fizeram o papel de outsiders, tal era a preparação e a qualidade da argumentação de muitos dos outros protagonistas deste referendo.

A comunicação social percebeu isso. E, apesar de, no início o ter feito timidamente, acabou por dar tempo de antena a estes novos interlocutores da sociedade civil. Finalmente surgiram caras novas e discursos diferentes. Sentiu-se que algumas destas intervenções estavam mais perto das pessoas. Pareciam ser mais genuínas, uma vez que não apresentavam uma linguagem demasiado fechada  normalmente utilizada pelos políticos.

As regras do jogo mediático alteraram-se temporariamente. Por essa razão, muitos dos comentadores ficaram pouco à vontade. As suas análises e artigos de opinião foram, em muitos casos, pobres em termos de conteúdo argumentativo, contudo repletos de carga ideológica, chegando mesmo a desaparecer a linha que separa o comentário da própria actuação política. Ao mesmo tempo, percebia-se que muitas vezes não estavam à altura de criticar as inúmeras intervenções proferidas por uma sociedade civil muito bem capacitada em várias áreas (por exemplo, no direito e na medicina). Aliás, aquele não era definitivamente o tipo de comentário que estavam habituados a fazer, visto exigir uma preparação técnica superior que só a especialização permite.

Julgo, por fim, que se abriu uma brecha neste círculo fechado. Foi uma lição e um sinal dos tempos. Chegou a altura de quebrar este autismo. A sociedade civil precisa de intervir mais, é preciso dar-lhe esse espaço porque todos temos a ganhar com isso.

Pedro Afonso - Psiquiatra

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei do tema e da abordagem. Bem haja! Viva a sociedade civil. Parabéns ao blogger!